Enaltecimento da liberdade como valor supremo, destituído de sentido teleológico, mantendo-se este, por vezes, nos liberais moderados. No dizer de Dante (1265-1321), o maior dom que Deus concedeu ao homem, criando-o, foi della volontà la liberta (Divina Commedia, Paradiso, canto V). E Cervantes (1547-1616), no Don Quijote (parte II, c. 58), assim se exprime a respeito da liberdade: com ella no pueden igualarse los tesoros que encierra la tierra ni el mar encubre. Isso não quer dizer que a liberdade seja um valor absoluto, pois os homens, exercendo-a, devem ordená-la para o bem, conformando-se à ordem moral e jurídica, sem o que a liberdade pode transformar-se em licenciosidade desenfreada. Cada um de nós é livre enquanto domina a si mesmo, é senhor de seus atos; do contrário, expõe-se a ser dominado e escravizado pelas paixões. Esse dom sublime, expressão do livre arbítrio (a liberdade do querer decorre de um juízo da inteligência, que esclarece a vontade), só o conseguimos exercer na sua plenitude mediante um esforço, uma luta, uma conquista. Luta não só contra os que nos querem tirar a liberdade, mas contra nós mesmos, dado que a podemos perder em vista das más inclinações, antes as quais cumpre estar vigilante. É de se lembrar o conhecido dito de Ovídio (43 a.C. – 17 d.C.): video meliora proboque, deteriora sequor (vejo o que é melhor e aprovo, mas sigo o pior).
O liberalismo, porém — considerando a liberdade um valor supremo —, centra-se numa concepção do homem e da sociedade decorrente de pressupostos antropológicos e metafísicos. Não é, pois, o liberalismo apenas um sistema econômico ou um regime político. Desde fins do século XVIII, passou a constituir uma ideologia, dinamizada pela Revolução Francesa (1789), cujas sequelas se fizeram sentir em vários países do Velho e do Novo Mundo.
A ideologia do liberalismo tem seu ponto de partida na falsa afirmação inicial de Rousseau (1712-1778) em Du contrat social: L’homme est né libre, et partout Il est dans fers (o homem nasceu livre, e por toda a parte está agrilhoado). É evidente que o homem nasce com uma série de dependências, e não há nenhuma liberdade na criancinha, que, entregue a si mesma e sem a devida proteção, perecerá. Quanto à segunda parte da aludida proposição, ela insinua que toda autoridade, sendo coercitiva, se opõe à liberdade. Daí uma antinomia radical entre autoridade e liberdade, implícita nas conclamações e nos discursos revolucionários de 1789, ao verem no poder um inimigo nato da liberdade, quando é certo que, para serem garantidas, as liberdades precisam da proteção do poder. Não se confunda o poder que tem legitimidade enquanto promove o bem comum, numa ordem de justiça, com o poder que se corrompe na tirania e nas arbitrariedades ditatoriais. O liberalismo elaborou-se ideologicamente à base de um antiautoritarismo libertário, mas acabou levando à destruição da liberdade, o que não é de admirar, pois, sendo a liberdade sem freio e não devidamente ordenada para o bem, nada impede que os mais fortes, exercendo-a sem medida, esmaguem os mais fracos, como observou Lacordaire (1802-1861).
Assim se compreende a passagem das democracias liberais para as democracias totalitárias, bem explicada por J. L. Talmon (1916-1980), professor da Universidade Hebraica de Jerusalém (The Origins of Totalitarian Democracy, Secker & Warburg, London, 1951) e Michel Schooyans, da Universidade de Louvain (La dérive totalitaire du libéralisme, Éditions Universitaires, Paris, 1991).
Como absolutização da liberdade — entendida numa autossuficiência e considerada fim de si mesma, sem se subordinar a uma finalidade transcendente —, o liberalismo, imanentista e secularizador, faz chegar ao extremo o antropocentrismo naturalista da Renascença. Eis o sentido mais profundo dessa ideologia da Revolução Francesa, revolução esta que foi, no dizer de Paolo Calliari, uma revolta contra Deus (1789 révolte contre Dieu, Les Éditions du Cèdre, Paris, 1976).
Nota Louis Salleron que nunca o poder havia sido menos coercitivo que no século XVIII. “Mas as ‘luzes’ conscientizam os indivíduos. Eles querem governar-se a si mesmos. O que eles aceitam cada vez menos é o princípio de autoridade” (Libéralisme et socialisme du XVIIIe siècle à nos jours, C. I. C., Paris, 1977, pp. 10-11). E o mesmo autor lembra o seguinte trecho de Le Curé de village de Balzac (1799-1850), que foi um dos primeiros a empregar o termo “liberalismo” para designar a doutrina dos liberais, trecho reproduzido no Grande Dicionário Robert: “Somos obrigados a fazer milagres numa cidade industrial onde o espírito de sedição contra as doutrinas religiosas e monárquicas criou raízes profundas, onde o sistema nascido do protestantismo e que se chama hoje liberalismo se estende a todas as coisas”.
Antes de aparecer o termo “liberalismo” — que parece datar de 1821, vindo o nome muito depois da coisa —, já se tinha posto em prática o liberalismo, com as leis d’Allarde e Chapelier, de 1791, dissolvendo as corporações de ofício e inaugurando uma era de plena liberdade de trabalho para os indivíduos. A partir da Revolução Francesa e por muito tempo, se desconheceria a liberdade de associação, até que os sindicatos começassem a ser reconhecidos legalmente.
O individualismo acompanha, como traço característico, tanto o liberalismo político quanto o econômico. Este, como escola ou corrente doutrinária, é anterior a 1791 e remonta ao tempo dos fisiocratas. Em 1767, Dupont de Nemours publicava o livroPhysiocratie, significando com esse termo o “governo da natureza”. Para ele, como para Quesnay (1694-1793) e Mercier de la Rivière (1720-1793), há leis naturais que regem a vida econômica, cuja espontaneidade deve ser respeitada pelos governos, daí resultando ampla liberdade de produção, de trabalho, de comércio. Cabe observar que, paradoxalmente, os fisiocratas apoiaram o despotismo esclarecido daquela época, fornecendo-lhe subsídios programáticos. Isso se explica por considerarem que os governos devem atuar fortemente para impor as leis naturais, e, além disso — propagando as “luzes” —, preparar, pela instrução, as novas gerações para conhecê-las e submeter-se a elas (donde a expressão despotismoesclarecido). As leis que aboliram as corporações foram atos despóticos de uma assembleia democrática, anunciando, desde os alvores da Revolução, o deslize do liberalismo para o totalitarismo. Antes os indivíduos a se defrontarem em regime de livre concorrência sem restrições e de liberdade de trabalho sem garantias para o operário, pois tinham desaparecido as autoridades sociais ou corporativas, ficava só a autoridade do Estado como árbitro exclusivo.
Consequências do individualismo liberal, em meio às novas condições de trabalho na indústria, foram, entre outras, a sobrecarga de trabalho nas fábricas, o desemprego, os salários vis, dando origem aos conflitos entre o capital e o trabalho (questão social), caldo de cultura para o desenvolvimento do socialismo.
Grandes teóricos da economia liberal foram os da escola inglesa: Adam Smith (1721-1790), Malthus (1766-1834), David Ricardo (1772-1823) e Stuart Mill (1806-1873). Estes economistas apresentam entre si algumas diferenças nas suas concepções, mas se distinguem todos dos liberais franceses da fisiocracia, que apontavam na terra a fonte principal da riqueza, ao passo que os mencionados autores britânicos viam esta fonte no trabalho urbano, através do comércio e principalmente da indústria. Por isso mesmo seus ensinamentos eram recebidos favoravelmente nos ambientes do capitalismo industrial. A economia liberal tem as suas fases: da primazia da agricultura (fisiocratas) à maior importância da indústria e do comércio (economistas ingleses); da produção à troca; do produto ao valor; do bem ao dinheiro. Eis aí o capitalismo.
Gide (1847-1932) e Rist (1874-1956), na sua conhecida Histoire des doctrines économiques (Recueil Sirey, Paris, 1926-1929), consideram Adam Smith o verdadeiro criador da economia política moderna. Em seu famoso livro sobre a riqueza das nações (An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations), ele afirma estar no interesse pessoal a mola da economia, acentua o caráter espontâneo e instintivo dos fenômenos econômicos e não usa a expressão “leis naturais” com a significação que lhe dava Quesnay, que submetia aqueles fenômenos a estas leis numa espécie de ordem providencial. Depois de Smith vêm Malthus, célebre pelos seus estudos sobre a população, e Ricardo, em cuja obra se pode ver a súmula do capitalismo liberal e, com a teoria do valor-trabalho, uma antecipação de Marx (1818-1883). John Stuart Mill encerra esta série dos clássicos do liberalismo na Inglaterra e encaminha-se francamente para o socialismo. É liberal no concernente à produção, mas, tendo em vista a realização da justiça, é socialista no tocante à repartição da riqueza.
O neoliberalismo do século XX tenta corrigir o cunho marcadamente individualista das concepções liberais, dando-lhes certo conteúdo social, e vem ganhando algum terreno após as duas grandes guerras. A de 1914 trouxe um primeiro rude golpe para a economia liberal. Até então, liberalismo e capitalismo, que haviam dominado no século XIX, eram passivamente aceitos pela maioria. Daí em diante passaram a ser objeto de repulsa e de inúmeras críticas. A intervenção do Estado, contra as normas do liberalismo, era inelutável ante as necessidades do tempo de guerra e a crise econômica. Surgiu a economia dirigida e começaram a multiplicar-se os planejamentos socializantes. Ora, observa Salleron, “da economia liberal à economia dirigida não há senão uma diferença de grau” (obra citada, p. 112). Com efeito, a economia liberal nunca chegou a ser um regime de liberdade absoluta — a não ser em tese, e nos seus pressupostos ideológicos —, mesmo porque um tal regime supõe ausência do Estado e de uma ordem jurídica positiva; ela é de certo modo uma economia dirigida.
Em nossos dias, Friedrich Hayek (1899-1992) e Milton Friedman aparecem como defensores categorizados e acérrimos dos princípios fundamentais do liberalismo econômico, especialmente visando a garantir a liberdade de mercado em face do intervencionismo estatal, típico da realidade atual. Vale observar que Hayek chegou a rejeitar a expressão “justiça social”, embora preconizando uma “rede de segurança para os desvalidos”, enquanto Friedman advoga a “garantia de renda mínima para os mais pobres”.
O liberalismo econômico (que não deve ser confundido com a legítima e necessária liberdade econômica) pretendia, através da liberdade absoluta, chegar à autorregulação do mercado, mas acabou gerando extensas áreas de miséria entre os trabalhadores, condições iníquas de trabalho, injustiças gritantes na distribuição de renda. Estava aí o quadro propício, para, em nome da igualdade, implantar-se o dirigismo estatal, tanto mediante o instrumental democrático (como tem acontecido frequentemente em muitos países) quanto com as planificações ditatoriais (como é próprio dos regimes totalitários).
Nos países capitalistas, o liberalismo econômico e o liberalismo político sempre estiveram em estreita simbiose. Até mesmo porque ambos têm servido à maravilha aos interesses da classe burguesa que, desde a derrubada da nobreza, se instalou no poder usando a retórica da “soberania do povo”.
Não se perca de vista o itinerário de desenvolvimento do liberalismo. Começou a germinar com o humanismo renascentista, que pretendeu valorizar o homem como princípio e fim de si mesmo, encerrando-o num individualismo radical. Quase simultaneamente, trouxe-lhe grande reforço o liberalismo religioso que, com o protestantismo, fez da “livre interpretação” da Bíblia o instrumento de autoafirmação superior da razão e da vontade, tornando o indivíduo o juiz supremo do próprio destino. Modalidades do liberalismo religioso manifestam-se, também, no século XIX, com o “catolicismo liberal” e, no século XX, com o modernismo, o progressismo e algumas formas de democracia cristã.
O liberalismo aprofundou suas raízes quando, no campo da filosofia, o cogito ergo sum de Descartes (1596-1650) lançou as bases do subjetivismo racionalista do homem moderno, que foi encontrando, daí para a frente, especialmente no pensamento político, as ideias de Locke (1632-1704), Rousseau e Kant (1724-1804), entre outros, a desaguarem no individualismo da vontade absoluta. Para que as liberdades individuais viessem a subsistir, implantaram-se instituições fundadas numa visão da sociedade considerada mera multidão de indivíduos, nela devendo existir, um mínimo de poder, ou, se possível, nenhum poder. Nesse sentido, esperava-se que a separação de poderes, segundo a teoria de Montesquieu (1689-1755), conjuminada com a proclamação dos direitos individuais, trouxesse a garantia das liberdades.
Ao longo dos duzentos e poucos anos de aplicação dos princípios do liberalismo político, a crise do Estado moderno veio revelando, além de odiosas iniquidades, extenso cortejo de insegurança e intranquilidade na vida social, da qual não têm estado ausentes trágicos e longos períodos de esmagamento da liberdade, cujo apogeu é o Estado totalitário gerado no ventre da anarquia liberal.
Presentemente, estimulados pela queda do “socialismo real”, ventos revisionistas vêm soprando sobre correntes diversas de pensamento, levando-as, por vezes, a significativo contorcionismo ideológico, tanto do lado socialista quanto do lado liberal. Além do pretendido “socialismo democrático”, veio a apregoar-se certo “socialismo liberal” em que a proposta é conciliar uma igualdade social desejável com uma liberdade individual dita possível. Mas dado o fracasso do socialismo [mesmo quando rerotulado, no pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945), de socialdemocracia: na Alemanha, na Suécia, na França, na Espanha), vêm-se sobressaindo, presentemente (1996), liberais de várias tendências, que intentam reelaborar as ideias do liberalismo, especialmente na área econômica. Mais próxima do liberalismo do laissez-faire, laissez passer é a já mencionada concepção de Hayek e Friedman, corifeus do neoliberalismo, cuja proposta é a de um Estado mínimo, em que a lei da livre-concorrência constitui a expressão do exercício amplo das liberdades individuais. Já um “social-liberalismo” aponta para uma “liberdade vigiada” em que o Estado garante a livre-iniciativa, mas intervém para reprimir abusos do poder econômico que ferem a liberdade de mercado e levam ao monopólio e ao lucro arbitrário. O “social-liberalismo” pretende uma organização social em que a economia de mercado esteja aberta às exigências da justiça social, norteada pelo princípio de solidariedade.
Os propugnadores dessas novas versões do liberalismo — voltadas, mormente, para a função do Estado na vida sócio-econômica — mantêm-se, no entanto, estritamente fieis aos princípios do liberalismo político originários da Revolução Francesa.
Dicionário de Política, José Pedro Galvão de Sousa, Clovis Lema Garcia e José Fraga Teixeira de Carvalho; T. A. Queiroz editor, São Paulo, 1998.