Por Felipe Aquino
Dom Estevão Bettencourt, osb, em sua Revista “PERGUNTE E RESPONDEREMOS” (Nº 456, Ano 2000, p.194), publicou uma matéria para explicar o que é de fato, o martírio cristão, que nada tem a ver com os que morrem por simples causas sociais e políticas. Pior ainda, quando alguns consideram mártires pessoas que o Papa nem beatificou.
Vejamos o que ensina Dom Estevão:
A palavra mártir vem do grego martys, martyros, que significa testemunha. O mártir é uma testemunha qualificada que chega ao derramamento do próprio sangue. O Papa Bento XIV assim se exprime:
“O martírio é a morte voluntariamente aceita por causa da fé cristã ou por causa do exercício de outra virtude relacionada com a fé”.
O Catecismo da Igreja Católica § 2473 retoma o conceito:
“O martírio é o supremo testemunho prestado à verdade da fé; designa um testemunho que vai até a morte”.
O Concílio do Vaticano II desenvolve tal noção:
“Visto que Jesus, Filho de Deus, manifestou Sua caridade entregando Sua vida por nós, ninguém possui maior amor que aquele que entrega sua vida por Ele e seus irmãos (cf. 1Jo 3, 16; Jo 15, 13). Por isso, desde o início alguns cristãos foram chamados – e alguns sempre serão chamados – para dar o supremo testemunho de seu amor diante de todos os homens, mas de modo especial perante os perseguidores. O martírio, por conseguinte – pelo qual o discípulo se assemelha ao Mestre, que aceita livremente a morte pela salvação do mundo, e se conforma a Ele na efusão do sangue – é estimado pela Igreja com exímio dom e suprema prova de caridade. Se a poucos é dado, todos, porém, devem estar prontos a confessar Cristo perante os homens, segui-lo no caminho da cruz entre perseguições, que nunca faltam à Igreja” (Lumen Gentium, nº 42).
A propósito deve-se notar o seguinte:
O martírio é uma graça que tem sua iniciativa em Deus. Não compete ao cristão procurar o martírio provocando os adversários da fé. A Igreja sempre condenou esse comportamento, pois seria presunçoso (quem pode ter a certeza que irá suportar corajosamente os tormentos do martírio?); além do quê, seria provocar o pecado do próximo ou dos algozes.
Para que haja martírio propriamente dito, requer-se que o cristão morra livremente, ou seja, aceite conscientemente o risco de morrer por causa da sua fé. A aceitação da morte pode ser explícita, como no caso em que o perseguidor deixa a escolha entre renegar a fé (ou uma virtude relacionada com a fé) e a morte. A aceitação livre pode ser implícita quando a pessoa sabe que o seu compromisso cristão pode levá-la até a morte e, não obstante, é fiel a esse compromisso.
Para que a Igreja declare oficialmente que alguém é mártir da fé, são efetuadas pesquisas a respeito:
- A verdadeira causa da morte: pode ser que um cristão seja condenado à morte não por ser cristão, mas por estar envolvido em alguma campanha política ou de outra ordem;
- A livre aceitação da morte por parte da vítima;
- Graças ou milagres obtidos por intercessão do(a) servo(a) de Deus.
O processo é iniciado na diocese à qual pertencia a vítima ou na qual ela foi levada à morte. Continua e termina em Roma, na Congregação para as Causas dos Santos.
O martírio é algo tão antigo quanto a pregação da Palavra de Deus. Já ocorreu na história dos Profetas do Antigo Testamento. No século II a.C. os irmãos macabeus sofreram a morte cruenta por causa da sua fé (cf. 2 Mc 7, 1-42), assim como o escriba Eleazar (cf. 2MC 6, 18-31).
O martírio teve seu ponto alto em Jesus Cristo. Santo Estevão é o primeiro mártir do Cristianismo após Jesus Cristo (cf. At 7, 55-60). No fim do século I, o Apocalipse fala de “imensa multidão”, que ninguém pode numerar, daqueles que lavaram e alvejaram suas túnicas no sangue do Cordeiro” (cf. Ap 7, 9.14). Em síntese, São Paulo afirma que “todos aqueles que quiserem viver com piedade em Cristo Jesus, serão perseguidos” (2Tm 3, 12).
Algo que poucos católicos sabem é que só no século XX houve mais mártires que em todos os 19 séculos anteriores somados. Na celebração do Jubileu do ano 2000, o Papa João Paulo II disse:
“Estes dois mil anos depois do nascimento de Jesus Cristo estão marcados pelo persistente testemunho dos mártires. Também este século, que caminha para o seu ocaso, conheceu numerosíssimos mártires, sobretudo por causa do nazismo, do comunismo e das lutas raciais ou tribais. Sofreram pela sua fé pessoas das diversas condições sociais, pagando com o sangue a sua adesão a Cristo e à Igreja ou enfrentando corajosamente infindáveis anos de prisão e de privações de todo gênero, para não cederem a uma ideologia que se transformou num regime de cruel ditadura. Do ponto de vista psicológico, o martírio é a prova mais eloquente da verdade da fé, que consegue dar um rosto humano inclusive à morte mais violenta e manifestar a sua beleza mesmo nas perseguições mais atrozes.
Inundados pela graça no próximo ano jubilar, poderemos mais vigorosamente erguer ao Pai o nosso hino de gratidão, cantando: Te martyrum candidatus laudat exercitus (o exército resplandecente dos mártires canta os vossos louvores). Sim, é o exército daqueles que “lavaram as suas vestes e as branquearam no sangue do Cordeiro” (Ap 7, 14). Por isso, a Igreja espalhada por toda a terra deverá permanecer ancorada ao seu testemunho e defender zelosamente a sua memória. Possa o povo de Deus, revigorado na fé pelos exemplos destes autênticos campeões de diversa idade, língua e nação, cruzar confiadamente o limiar do terceiro milênio. À admiração pelo seu martírio associe-se, no coração dos fiéis, o desejo de poderem, com a graça de Deus, seguir o seu exemplo, caso o exijam as circunstâncias” (Bula Incarnationis Mysterium nº 13).
O Papa João Paulo II nomeou uma Comissão destinada a recensear e conservar a memória dos mártires do século XX. A tal Comissão foi confiada uma tríplice tarefa:
- Elaborar um catálogo dos mártires do século XX;
- Preparar a comemoração desses mártires (marcada para 07/05/2000);
- Aprofundar a contribuição espiritual que trouxeram à Igreja.
Já existem mais de dez mil relatos de martírio ocorrido nos diversos continentes chegaram a Roma, alguns redigidos em duas linhas, outros em centenas de páginas; chegaram em cerca de dez línguas diferentes, que é preciso traduzir para o italiano e passar para o computador num programa especial de informática. Quanto à procedência desses relatos, 45% vêm de Conferências Episcopais e 40% de Congregações ou Ordens Religiosas.
Coloca-se uma questão nova a propósito do conceito de mártir: será mártir somente quem morre por ódio à fé ou pode ser tido como mártir aquele que passou anos em cárcere ou em campo de concentração, tendo sofrido cruéis tormentos, mas foi posto em liberdade ainda vivo? Houve, na realidade, Bispos, como Monsenhor Velychkovskyj na Ucrânia e Monsenhor Fishta na Albânia, que foram libertados da prisão quando estavam gravemente enfermos por causa das torturas e dos maus tratos e morreram pouco depois; podem ser equiparados aos mártires no sentido clássico?
As respostas enviadas aos questionários emitidos pela Comissão foram assaz diversas. Em setembro de 1998, a Igreja da Espanha tinha mandado 2075 relatórios; a da França, dez. Depois, a França enviou mais cinquenta relatórios e a Espanha mais 2000 novos relatórios; a Coreia, 200; a Polônia, 900. Quanto aos países dominados por governo anticatólico (Vietnam, China, Sudão…), têm-se manifestado timidamente – o que bem se entende, dado o controle das autoridades civis.
É de notar ainda que em Jerusalém existe o Instituto Yad-Vashem, fundado em 1953 para recensear os nomes de pessoas não israelitas que ajudaram ou salvaram judeus perseguidos, com risco para a sua própria vida; esses beneméritos recebem o título de “Justos das Nações”, que “amaram o próximo como a si mesmos”. Na Europa, 12.000 justos foram assim reconhecidos e muitos ainda ficam no anonimato. A justificativa apresentada para a exaltação desses nomes é que “todo aquele que salva uma vida salva o universo todo inteiro”.
Dom Estevão Bettencourt narra a perseguição e os casos de martírio do comunismo na Albânia dominada pela Rússia. (Revista PR, 456, 200, p. 194). Vejamos o impressionante relato:
Em 1945, a Albânia tornou-se uma República Popular sob a chefia de Enver Hoxha, que empreendeu violenta opressão religiosa contra cristãos e muçulmanos. A Igreja Católica então contava 124.000 fiéis num total de um milhão de habitantes, mas a sua irradiação ia muito além do número de fiéis. A perseguição desencadeou-se primeiramente contra os Bispos, os Religiosos e os missionários estrangeiros; os fiéis que os defendiam, foram presos, torturados e, às vezes, mortos por recusarem denunciar publicamente os pretensos crimes do clero. Essa primeira onda persecutória visava também a cortar o relacionamento do clero com a Santa Sé mediante argumentos e promessas sedutoras. Os clérigos resistiram; então Enver Hoxha, a conselho de Stalin, resolveu eliminar radicalmente a Igreja Católica. Em 1948 só restava um Bispo católico em vida nas montanhas do Norte do país. Ficavam ainda umas poucas dezenas de presbíteros, que procuravam atender à Liturgia dominical, passando de uma paróquia a outra sob a permanente ameaça de encarceramento ou de execução sumária.
A situação em breve se modificou quando o governo albanês rompeu com a Iugoslávia; precisava de se consolidar interiormente; daí travar negociações com a Igreja em busca de um modus vivendi. Em 1951, Enver Hoxha aceitou firmar um tratado com Mons. Shilaku, reconhecendo os laços da Igreja na Albânia com Roma. Todavia o texto oficial publicado pelo governo albanês não correspondeu ao que fora estipulado nas conversações. Houve então protestos da parte de sacerdotes, que foram assassinados ou enviados para campos de concentração. Apesar de tudo, o povo católico não renunciava a viver a sua fé.
Entre 1952 e 1967, a situação se estabilizou entre repressão governamental e resistência dos fiéis. Todos os anos um sacerdote ou uma Religiosa morria em prisão ou em campo de concentração. Quem estava em campo de concentração, era retirado, por vezes, para comparecer a uma sessão de humilhação pública nas ruas das grandes cidades.
Aos 6 de fevereiro de 1967, Enver Hoxha dirigiu um discurso a toda a nação, incitando a juventude albanesa a levar a termo a luta “contra as superstições religiosas”. Os guardas vermelhos da Albânia, à semelhança dos da China, foram encarregados dessa revolução cultural. As igrejas, os conventos, as mesquitas foram tomados de assalto, profanados, saqueados, incendiados, destruídos ou transformados em depósitos, lojas ou apartamentos. Em oito meses, 2169 lugares de culto foram assim extintos. Aos 22 de novembro de 1967, a Gazette, órgão oficial do governo albanês, publicou um decreto que anulava todos os acordos entre confissões religiosas e o Estado. A administração dos sacramentos, os rituais e as preces públicas foram proibidos sob pena de graves sanções. Os últimos membros do clero e os Religiosos foram presos, espancados em público, humilhados, intimados a apostar e, na maioria, enviados para campos de concentração. Não houve, porém, uma única defecção da parte de sacerdotes católicos.
O governo foi mais além… Pôs-se atacar qualquer objeto, símbolo ou gesto que pudesse ter significado religioso até mesmo na intimidade da família. Tenha-se em vista o seguinte caso: os católicos albaneses costumam iniciar suas refeições tomando um copo de raki, sua bebida preferida, e levantando a taça com as palavras: “Louvado seja Jesus Cristo!”. Pois bem, a partir de 1967 tais dizeres podiam custar cinco anos de prisão. Os(as) professores(as) de escolas maternais perguntavam às crianças se sabiam fazer o sinal da cruz; caso alguma criança demonstrasse sabê-lo, os seus genitores eram punidos até com cinco anos de prisão. Era proibido fabricar terços com grãos de girassol, como fazem os camponeses de Albânia. Era interditada a Rádio Vaticana, que todas as noites tinha emissões em língua albanesa. Em 1975, foram excluídos também todos os nomes que pudessem lembrar a religião: Benedito(a), Pedro, Paulo, Maria, Joana…
Não obstante, houve famílias que continuaram a transmitir a fé a seus filhos de maneira secreta. Alguns poucos sacerdotes clandestinos ainda celebravam os sacramentos às ocultas. Nos campos de concentração, os padres batizavam os adultos que o desejassem; caso fossem descobertos, como o foi o Pe. Kurti, eram executados.
Apesar de toda essa repressão religiosa, não se viu surgir o homem novo albanês exaltado pelos discursos de Enver Hoxha; a vida de fé prosseguiu clandestinamente, enquanto o país foi afundando na miséria ainda hoje perceptível.
Uma autêntica filha da Albânia, Madre Teresa de Calcutá via essa realidade com olhos confiantes na Providência Divina. Assim, ao receber o Prêmio Nobel da Paz de 1979, declarou:
“Creio que a Igreja na Albânia está vivendo a experiência de sexta-feira santa, mas nossa fé nos ensina que a vida de Cristo não terminou na sexta-feira santa, e, sim, se consumou na Ressurreição. Nosso povo albanês há de guardar esta verdade na sua mente. Tal é o segredo da paciência cristã…”
Os primeiros sinais de distensão religiosa ocorreram após a morte de Enver Hoxha. Mas somente em novembro de 1990 (um ano após a queda do Muro de Berlim), o Pe. Simon Jubani um dos raros sobreviventes, celebrou a primeira Missa pública após 1967, correndo ainda o risco da própria vida. Em breve, porém, pôde batizar uma centena de adultos. O regime comunista recuou, como nos demais países da Europa, e aos fiéis foi concedida a liberdade de crença.
Com dificuldade a Albânia procura reerguer-se. Ainda há violência no interior do país, agravada em 1998 e 1999 pelas guerras nos Bálcãs.
1.1. Algumas das vítimas
1) Cyprian Nika
Cyprian Nika era o padre Provincial dos Franciscanos da Albânia. Após algumas semanas de cárcere e torturas, foi levado à presença de oficiais do Estado para discutir sobre a existência de Deus. Disse-lhes: “Como ser humano pensante, creio que existe algo após esta breve existência na terra, em que o bem e o mal encontrarão a respectiva sanção. Algo que ultrapassa os limites da natureza humana, algo de sobre-humano, de sobrenatural, em que o mal e a injustiça não terão lugar”. Não lhe foi dado acabar o seu discurso, pois os seus interlocutores perderam a paciência e puseram-se a injuriá-lo. Um deles exclamou: “Meu deus é Enver Hoxha!”. O Religioso orou então: “Faça-se a tua vontade!”. Foi fuzilado pouco depois.
2) Daniel Dajani
Quando andava por uma das ruas da cidade de Shkodër com um dos seus seminaristas, o Pe. Daniel Dajani foi interpelado por agitadores, que o insultaram. Continuou a caminhar sem responder. Mas o jovem seminarista, perturbado, não conseguir recuperar a calma. O Pe. Daniel disse-lhe: “Caro Lazër, eles vieram com espingardas, mas foram embora com amor”. Finalmente o Pe. Daniel Foi preso e testemunhou diante dos seus juízes: “Desde a infância tenho fé e estou pronto a morrer para dar testemunho da minha fé”. Foi então executado juntamente com Mozafer Pipa, o jovem advogado muçulmano que o defendera.
3) Ded Macaj
Este jovem sacerdote de 28 anos foi condenado à morte após um processo simulado. Declarou diante do pelotão que o executou: “Perante Deus, em cuja presença vou comparecer em breve, e perante vocês, caros soldados, declaro que sou assassinado tão somente por causa do ódio à Igreja Católica. E eu o digo sem amargura nem ódio para com aqueles que me vão fuzilar”.
4) Mikel Betoja
Este jovem sacerdote clandestino foi depreendido a celebrar a Missa às ocultas numa aldeia. Foi logo condenado a quinze anos de campo de concentração por motivo de “agitação e propaganda”. Professou então sua fé em público. Em conseqüência a sua sentença foi logo trocada pela de condenação à morte. Executaram-no aos 10/02/74.
5) Ded Malaj
O jovem vigário de Dajc foi fuzilado às margens do lago de Shkodër por Ter continuado a exercer o seu ministério. Os fiéis que o defenderam, foram mandados para campos de concentração. Acontece, porém, que trinta anos depois a aldeia continua fiel à sua fé católica.
6) Leonardo Shajakaj
Sacerdote de 76 anos de idade, recusou dizer o que ouvira em confissão. Foi executado por causa deste “crime” em 1964.
7) Mons. Gjergj Volsj
Fora o mais jovem Bispo do Mundo. Recusou-se a romper com Roma. Foi então preso e torturado durante meses. Na véspera de ser executado, recebeu a visita de sua mãe, que chorou. Mas o filho lhe disse: “Mãe, não chores por causa do teu filho; antes, chora por todo o povo”.
Prof. Felipe Aquino