Texto do livro "Didascalicon" de Hugo de São Vítor, tradução de
Rafael Falcón:
Capítulo 13: Humildade
O princípio da educação é a humildade, a
respeito da qual, embora haja muito que
ensinar, três coisas tocam principalmente ao
estudante: primeiro, que não julgue vil
nenhum conhecimento e nenhum escrito;
segundo, que não lhe envergonhe aprender
com ninguém; terceiro que, tendo adquirido
algum conhecimento, não despreze as
outras pessoas.
Muitos são enganados pela vontade de
parecerem sábios antes do tempo. Por isso
irrompem numa altivez inflada , de modo
que começam a simular o que não são, e
envergonhar-se do que são; e afastam-se
ainda mais da sabedoria, na medida em que
não têm em mente serem sábios, mas assim
se considerarem .
Conheço muitos desse gênero, os quais,
embora lhes falte até a instrução mais
elementar, não se dignam a estar senão
entre os sublimes , e julgam que, para
fazer-se grandes, basta uma única coisa: ler
os escritos ou ouvir as palavras dos grandes
e sábios . “Eu”, dizem eles, “os vi. Eu fui
aluno deles. Eles costumavam conversar
comigo, muitas vezes. Eles, os sublimes;
eles, os famosos, me conheceram”. Ah, mas
oxalá ninguém me conheça, e eu conheça
todas as coisas !
Vós vos gloriais de ter visto Platão, e não de
tê-lo entendido . Julgo indigno de vós que
continueis a ouvir-me: eu não sou Platão,
nem de ver Platão tive a graça . Para vós,
basta: bebestes da fonte mesma da filosofia.
Mas quem dera ainda tivésseis sede! O rei,
depois de áureas taças, bebe duma
moringa.
Por que enrubesceis? Ouvistes Platão; que
ouçais também a Crisipo. Diz um
provérbio: “o que tu não sabes, talvez o
saiba Ofelo” . A ninguém foi dado saber
tudo, nem há quem, por sua vez, não tenha
recebido algo especial da natureza.
Portanto, o estudante prudente ouve a todos
de boa vontade, e tudo lê, não desprezando
escrito, nem pessoa, nem ensinamento
algum . Busca em todos, indiferentemente,
o que vê faltar a si mesmo, e não pensa no
que já sabe, mas em tudo o que desconhece.
Daí o dito platônico: prefiro aprender
modestamente o alheio, a impor
despudoradamente o que vem de mim
mesmo. Por que, então, à idéia de aprender,
enrubesces, mas não te envergonhas de
desconhecer? Este pudor é mais virtuoso
que aquele. Ou por que afetas elevações,
quando jazes no fundo? Considera, antes, o
que tuas forças conseguem carregar .
Começa muito bem, quem começa na
ordem certa. Alguns, quando querem dar
um grande salto, caem de cabeça; portanto,
não te apresses demasiadamente. Assim
atingirás com mais rapidez a sabedoria.
Aprende de todos, de bom grado, o que não
sabes; pois a humildade pode fazer comum
a ti o que a natureza fez próprio de cada
pessoa. Serás mais sábio que todos, se de
todos quiseres aprender. Os que recebem de
todos são do que todos mais ricos.
Não tenhas por vil nenhum conhecimento,
pois todo conhecimento é bom. Quanto aos
livros, se tens tempo, não desprezes nenhum
a tal ponto que não o leias . Se não tirares
daí nenhum lucro, nada perdes,
principalmente porque não há livro,
segundo me parece, que não proponha algo
desejável, se for examinado no momento
apropriado e com o método conveniente, e
que não tenha ainda algo de especial, que o
escrutinador diligente da linguagem, não
tendo encontrado em outro lugar, possa
colher, com tanto mais gratidão quanto
maior for sua raridade .
Contudo, nada é bom, se toma o lugar de
algo melhor. Se não podes ler tudo, lê o que
for mais útil; e, ainda que tudo possas ler,
não se deve despender o mesmo esforço em
tudo: lemos algumas coisas para que não
sejamos ignorantes delas; outras, para que
não nos sejam inauditas porque às vezes
damos valor demais àquilo de que nunca
ouvimos falar, e é mais fácil formar juízo
sobre uma coisa quando se conhece seu
fruto.
Agora consegues enxergar quão necessária
é para ti esta humildade, de não fazer pouco
de qualquer conhecimento, e aprender com
todos de bom grado. Ser-te-á igualmente
útil que, quando começares a saber algo,
não desprezes os demais. Alguns sofrem
desse ego inflado porque contemplam
demasiadamente seu próprio conhecimento
e, quando lhes parece que são algo, julgam
que outros, aos quais não conhecem, nem
são nem poderiam ser como eles .
Daí também borbotam certos vendedores de
bijuterias que, gloriando-se não sei de quê,
acusam nossos primeiros Padres de
parvoíce, crendo que a sabedoria nasceu
consigo, e consigo há-de morrer. Declaram
que o modo de falar das Sagradas Escrituras
é tão simples, que a seu respeito não
convém escutar mestres, pois qualquer um
pode penetrar os arcanos da verdade com
seu próprio engenho. Enrugam o nariz e
torcem os lábios para os que estudam as
Escrituras, e não percebem que ofendem a
Deus, cujas palavras possuem, de fato, uma
bela simplicidade em sua expressão, e no
entanto, quando seu sentido é deformado,
proclamam tolices . Não aconselho que se
siga tal proceder.
De fato, o bom estudante deve ser humilde e
manso, alheio a preocupações vazias e
tentações dos prazeres, esforçado e zeloso,
de tal modo que aprenda de bom grado com
todos; nunca presuma de seu próprio
conhecimento; fuja dos autores de doutrina
perversa como se veneno fossem ; aprenda
a investigar um assunto por muito tempo
antes de julgar; não busque parecer culto,
mas sê-lo; ame os dizeres dos sábios, depois
de entendê-los , e se esforce para tê-los
sempre diante dos olhos, como um espelho
de seu próprio rosto; e se porventura alguma
matéria mais difícil fechar-se à sua
inteligência, não irrompa imediatamente em
críticas, pensando que nada é bom exceto
aquilo que ele mesmo consegue entender .
Esta é a humildade conveniente à educação
dos estudantes."
(recomendo a leitura da fonte do texto que contém riquíssimas notas explicativas no
pdf aqui)