Mais uma seleção dos mais importantes trechos do livro "Uma Nova História da Música" de Otto Maria Carpeaux sobre o período da Renascença e Reforma:
"Renascença e Reforma são movimentos antagônicos, na
música assim como nos outros setores da vida. Não é possível defini-los em
termos musicais, porque o novo século não significa, por enquanto, mudança de
estilo: continua-se a escrever em estilo “flamengo”; mas o centro desloca-se
para outras regiões, a França, a Alemanha, a Itália, a Inglaterra. Também se
nota uma diferença de natureza social: nos países que continuam fiéis à fé romana,
a música sai, mais que antes, do recinto das igrejas para encher a vida da
sociedade aristocrática; nos países que aderem à Reforma, a música retira-se,
principalmente, para a igreja, adaptando-se às formas mais simples da devoção
ao novo.
A região franco-flamenga foi o foco de irradiação da
música renascentista para onde havia sociedades aristocráticas que continuavam fiéis
ao credo de Roma, como na Alemanha do Sul e na Itália; ou então, sociedade que
escolheu uma via media entre a velha fé e os rigores do calvinismo, como na
Inglaterra elisabetiana.
Mas os primeiros portadores dessa nova mensagem
musical ainda são "flamengos”.
O primeiro grande nome é Philippe de Monte
(1521-1603), natural de Mechelen (Malines), que trabalhou na Itália, para tornar-se
depois regente da capela do imperador alemão Rodolfo II em Praga. Sua Obra
imensa é hoje um dos objetos preferidos dos estudiosos da musicologia, mas sem
ter saído desse círculo estreito; houve oportunidade de ouvir sua bela Missa Inclina cor meum.
O lugar que hoje se pretende conceder a Monte
pertence, tradicionalmente, e com razão, a Orlandus Lassus (Roland de Lattre) (c.
1530-1594): natural de
Mons, regente de coros na França e na Itália; de 1560 até sua morte, regente da
capela da corte de Munique, centro do catolicismo romano na Alemanha do Sul.
Seu universalismo lembra os grandes gênios da
Renascença, os Leonardo, os Miguel Ângelo. Sabe dirigir as massas sonoras como se
fosse um Handel da época do canto a capela. Assim como Handel, é Lassus
cosmopolita: é flamengo, francês, italiano e alemão ao mesmo tempo. O espírito
e a técnica da música contrapontística flamenga são inconfundíveis em grande
parte dos seus inúmeros motetes: o Salve Regina (4 vozes) e o Pater Noster em fá
maior, que pertencem ao repertório das associações corais; o motete Timor et
Tremor, que ainda continua sendo cantado no Domingo de Páscoa nas igrejas de
Munique e Viena; os Magnificats, o motete Justorum animae e o mais famoso de
todos, Gustate et videte, do qual conta a lenda: foi escrito cm Munique, para
procissão que pediu chuvas depois de longo período de seca; e comoveu de tal
maneira o céu que a chuva logo começou a cair.
São obras “góticas”. Mas seu autor também escreveu,
com a mesma mão infalivelmente segura do efeito sonoro, chansons eróticas com
letra francesa (Quand mon mari, Margot, J’ai cherchê), às vezes humorísticas
(Le Marchê d’Arras), e coros latinos para as tertúlias alegres de estudantes
(Fertur in convivio). É autor de madrigais italianos como Amor mi strugge e
Matona mia cara.
É latinista erudito, pondo em música textos de
Virgílio (Tityre) e Horácio (Beatus Me). E é, apesar de certas veleidades
reformatórias, um devoto católico romano, em cuja Obra já se anuncia a Contra-Reforma.
Esse grande humanista, humorista e homem da sociedade aristocrático é o autor
do Magnum opus musicum (publicado postumamente em 1604): nada menos que 516
motetes para todas as festas e comemorações do ano litúrgico, de uma variedade infinita
de técnicas, inspirações e emoções: o extático Justorum animae, descrevendo a
ascensão das almas dos justos para o céu, e o amargo Tristis es, anima mea, de
pessimismo brahmsiano, o retumbante Creator omnium e o solene Resonet in
laudibus, e tantos outros. No entanto, a obra capital de Orlandus Lassus,
talvez a maior do século, são os Psalmi paenitentiales (1560), isto é, os
Salmos nºs 6, 31, 37, 50, 101, 129 e 142 (conforme a numeração da Vulgata), de
profunda contrição e energia sombria; sobretudo o Salmo 50 (Miserere), e o
Salmo 129 (De Profundis). É a música mais emocionada, mais dramática de toda a
época do canto a capela, não acompanhado. No coro profano Hola, Charon (1571),
Lassus tinha evocado a Morte com o espírito pagão de um homem da Renascença.
Nas Sacrae Lectiones ex Job (1565) e nas Lamentationes Hieremiae (1585) já o inspiram
textos pessimistas da Vulgata do Velho Testamento. Mudam os tempos. No fim do
século, Munique será o centro da Contra-Reforma na Alemanha. Nas Lagrime di San
Pietro (1594) já se sente algo de espírito barroco, talvez devido ao texto, do poeta
italiano Luigi Tansillo.
Orlandus
Lassus é, pela intensidade do seu sentimento profano e pela
angústia religiosa, o mais “moderno” entre os mestres “antigos”. Sua síntese de
construção rigorosamente arquitetônica e de abundante lirismo já fez pensar na
síntese de elementos equivalentes em Brahms. Mas as comparações dessa natureza
nunca deixam de ferir a consciência historicista. A arquitetura polifônica de
Lassus não tem nada que ver com a polifonia instrumental de um
pós-beethoveniano; e o seu lirismo reflete o estado de espirito de uma
sociedade da qual só subsistem recordações livrescas.
Essa sociedade aristocrática é a da Renascença, mais
exatamente a do Cinquecento, de uma época já sacudida pelas tempestades da
Reforma e Contra-Reforma, enquanto a aristocracia está ameaçada de se
transformar em mero ornamento das cortes de príncipes absolutos. A música dessa
sociedade é, na França, a chanson, cujo grande mestre é Clément Jannequin
(1485-1560); e, na Itália, o madrigal, a canção a 4 ou 5 vozes, cantada por damas
e cavalheiros, sem acompanhamento (embora mais tarde se admita o do alaúde);
espécie de motete profano, as mais das vezes de lirismo erótico. Uma arte fina
e requintada que tem, hoje, o sabor de recordação de álbum de nobre família extinta.
Mas o madrigal não é um gênero inteiramente morto. Algumas dessas pequenas
obras de Baldassare Donato Donati (m. 1603) e Giovani Giacomo Gastoldi
(1556-1622) ainda são cantadas pelas associações corais, embora em arranjos
pouco fiéis ao espirito dos originais, feitos por compositores pós-românticos
do século XIX, como Peter Comelius e Herzogenberg: são especialmente conhecidos
os madrigais Tu tti venite amati e A lieta vita de Gastoldi.
O maior dos madrigalistas italianos é Luca Marenzio
(c. 1550-1599), que foi chamado "il piú dolce cigno”. Sua arte é estupendamente
expressiva; não evita cromatismos, modulações audaciosas, dissonâncias para
interpretar textos como Già torna, O voi che sospirate, Scaldava ií sol,
Cantiam la bella Clori, In un boschetto, Se il raggio dei sol, Scendi dal
paradiso— às vezes lembra a arte de Hugo Wolf. É a música com que se
divertiram, nas pausas da conversação sobre filosofia platônica, literatura
latina e educação dos nobres, as princesas, literatos e prelados reunidos na
corte de Urbino: das conversas que vivem para sempre na obra literária mais
nobre da Renascença italiana, no Cortegiano de Baldassare Castiglione.
O madrigal, embora forma arcaica, ainda hoje não
morreu de todo; sobrevive especialmente na Inglaterra, onde se cultiva a memória
da música elisabetiana. Música de uma sociedade aristocrática que imita
assiduamente as maneiras finas dos italianos; e que, pelo menos em parte,
guarda fidelidade às expressões estéticas do mundo católico; mas a Reforma já
liberou as forças de vitalidade profana da “merry old England" da Rainha
Elisabeth e de William Shakespeare.
Entre os compositores elisabetianos há um número
surpreendentemente grande dos que continuam fiéis ao catolicismo romano, apesar
do rigor com que a monarquia impôs a separação da Igreja Anglicana de Roma;
talvez porque as novas formas litúrgicas não concederam à música as mesmas
oportunidades de outrora. No terreno profano cultivam o madrigal, as
composições para alaúde e uma espécie de elementar música pianística: o
instrumento é chamado de “Virginal”. É uma arte aristocrática, que também sabe
interpretar os cris de la rue, do povo. Nunca foi tão inteiramente esquecida
como a música renascentista no Continente europeu. Há, na Inglaterra moderna,
numerosas associações de madrigal; e no piano ou no cravo se toca, ainda ou de novo,
a música de “Virginal” (J. Kerraan, T h e Elisabelhan Madrigal, Oxford, 1963).
O gênio da música elisabetiana é William Byrd
(1543-1623) (Edição das Obras por H. Fellowes, Londres, 1937 e seguintes; F.
Howes, William Byrd, Londres, 1928; E. H. Fellowes, William Byrd, 2.a ed„
Londres, 1948), que ficou fiel à fé romana, apesar de desempenhar o cargo de maestro
da capela da rainha protestante. Obra meio clandestina foi, portanto, sua Missa
para 5 vozes (1588), por causa da qual a posteridade lhe concedeu o título de
“Palestrina inglês”: obra realmente de grande valor, mas menos palestriniana do
que "gótica”, "flamenga”. No resto, Byrd foi um daqueles gênios
universais da Renascença, dominando todos os gêneros. É estupenda a amplitude
emocional dos seus Psalms, Sonnets and Songs of Sadness and Piety. Seus
madrigais (Lullaby, This Sweet and Merry Month, Though Amaryllis Dances)
lembram o ambiente erótico e alegre das comédias da primeira fase de
Shakespeare. A "merry old England” também vive na música "pianística”
de Byrd, para o Virginal, na qual o “Palestrina inglês” se revela de estranha
modernidade, deixando de lado a polifonia pedante para escrever variações
espirituosas sobre danças aristocráticas e populares: Carmaris Whistle,
Sellengefs Round, The Bells e a Pavane Earl of Salisbury são, até hoje, música
viva.
(...) Depois, o puritanismo vitorioso nas guerras civis acabou, dentro e fora
da igreja, com a música.
O calvinismo francês não foi tão radicalmente
infenso à música, pelo menos no início. Contudo, o regime democrático das comunidades
calvinistas não permitiria a posição privilegiada de um coro de músicos
profissionais, executando obras complicadas às quais os outros fiéis só
poderiam assistir passivamente, a título de edificação estética. O culto tem de
ser de todos. Um grande polifonista como Claude Goudimel (c. 1505-1572), uma
das vítimas dos massacres de Huguenotes na província, depois da Noite de São
Bartolomeu, devia limitar sua arte a formas mais simples, para a comunidade toda
cantar seus 76 Salmos (1565), dignos e severos. Essa simplificação e, mais
tarde, a exclusão de toda a música instrumental dos templos calvinistas, com a
única exceção de prelúdios e acompanhamentos do órgão, acabaram com a música no
calvinismo francês e holandês. Dentro do mundo protestante, a arte foi salva
pelo acaso feliz da musicalidade de Lutero.
Talvez nem fosse acaso. A esse respeito como a
outros, Lutero foi o porta-voz da nação germânica, cuja profunda musicalidade é
o mais importante elemento em toda a história da música moderna. Mas só da
moderna. Na Idade Média e nos séculos XV e XVI a contribuição dos alemães não é
de primeira ordem. O único nome indispensável é o de Jacobus Gallus (Handl)
(1550-1591), que os historiadores da sua nação chamam de "Palestrina alemão”;
cada nação pretende ter tido seu Palestrina, no século XVI. O apelido é
inadmissível quanto ao estilo de Gallus, que é “gótico-flamengo”. Mas um grande
mestre foi esse último polifonista católico alemão: dão testemunho motetes como
O magnum mysterium, Laudate Dominum e o comovente Ecce quomodo moritur, que
ainda é cantado, na Semana Santa, nas igrejas da Baviera, Áustria e Renânia.
As músicas de Lassus você ouvirá no nosso canal no Telegram conforme informado na nossa primeira publicação deste estudo.
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